quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

LUGAR DA MULHER É NA POLÍTICA

LUGAR DE MULHER É NA POLÍTICA

A ativista americana Carrie Chapman e a 
paulista Bertha Lutz (de vestido branco) 
no 1º Congresso Feminino Brasileiro, sediado 
no Rio de Janeiro em 1922
O Brasil elegeu pela primeira vez uma mulher para o cargo de presidente da República. O feito inédito reflete as conquistas da centenária luta das brasileiras por representação na vida pública e por igualdade de direitos na política nacional


Engana-se quem pensa que “nunca antes” as brasileiras se interessaram pela vida pública. A luta de nossas avós por representação política vem de longa data. Foi um difícil processo, e muitas de suas reivindicações, hoje centenárias, ainda não foram atendidas.

A história começa no século XIX. O período, repleto de importantes transformações no cotidiano da população, também foi marcado por intensas tentativas de participação das mulheres nas discussões em favor de melhorias na sociedade. Sua arma? A pena, a escrita. No momento em que emergiam movimentos sociais como o socialismo e o sufragismo (campanha pela universalização do direito de voto), elas não usaram apenas a voz, mas, sobretudo, as palavras como instrumento de luta.

Uma das pioneiras foi Nísia Floresta. Nascida na pequena localidade de Papari, no Rio Grande do Norte, casada contra a vontade aos 13 anos, logo abandonou o marido e, em 1832, já sustentava mãe e filhos com o salário de professora. Em 1832, publicou #Direitos das mulheres e injustiças dos homens#, artigo em que enfrentava os preconceitos da sociedade patriarcal, exigindo igualdade e educação para todas.

Segundo Nísia, a situação de ignorância em que eram mantidas era responsável pelas dificuldades que as mulheres enfrentavam. Submetidas a um círculo vicioso, não tinham instrução e não podiam participar da vida pública. Não participando da vida pública, continuavam sem instrução. Alguns anos depois, já instalada no Rio de Janeiro, Nísia passou a realizar conferências defendendo a emancipação dos escravos, a liberdade de culto e a federação das províncias sob um sistema de governo republicano.



O estereótipo da feminista
em caricatura de 1924
Na mesma época, no extremo oposto do Império, Ana de Barandas se opôs à Revolução Farroupilha. Advogando em favor da participação das mulheres na luta política, colocava-se contra a separação da província do Rio Grande do Sul. E não o fazia só: Delfina Benigna da Cunha e Maria Josefa Barreto usaram versos, redondilhas e panfletos para acusar de anarquistas os partidários da separação. Atacadas pelo sexo oposto por seu envolvimento em ações políticas, eram defendidas por Ana de Barandas: “Tendo nós os mesmos atributos (...) por que autoridade não haveis de querer que nós outras não façamos uso desse admirável presente que recebemos do Criador?!”.

Enquanto isso, na sede da corte, o Rio de Janeiro, a poetisa Narcisa Amáliaprimeira mulher a se profissionalizar como jornalista, compartilhava as preocupações de jovens intelectuais de sua geração. Eles colocavam a pena a serviço das ideias democráticas e progressistas, da modernização da nação e da elevação do nível cultural e material da população. A percepção da necessidade de educação unia as agendas femininas, de norte a sul: “Sem a instrução popular – dizia Narcisa – a democracia jamais passará de uma dourada quimera”.

A segunda metade do século XIX assistiu também ao engajamento de muitas de nossas avós na luta pela abolição. Há inúmeros exemplos: Adelinaa charuteiraescrava do próprio pai, participou de inúmeros comícios abolicionistas em São Luís do Maranhão. Conhecedora dos meandros da cidade onde circulava para vender seus charutos, passou a ajudar os abolicionistas passando-lhes informações e articulando a fuga de escravos.


A escritora Nísia Floresta,
precursora do feminismo no país
Na Bahia, Amélia Rodrigues protestava contra o envio de cativos para a Guerra do Paraguai em artigos publicado no jornal O Monitor. Em Pernambuco, Ignês Pessoa descrevia, em poemas, a miséria, sangue e lágrimas dos afro-descendentes, enquanto Maria Amélia de Queiróz, batalhadora polêmica e conferencista renomada, redigia incontáveis artigos defendendo o fim da “criminosa instituição” e em favor da república e da participação das mulheres nas “lutas dos homens”. Já no CearáMaria Tomásia Figueira de Melo presidia a sociedade abolicionista feminina Cearenses Libertadoras.


Depois do golpe militar que proclamou a República, em 1889, a vida urbana se acelerou e as indústrias se multiplicaram. Imigrantes trabalhavam mais de 12 horas diante de máquinas, nas piores condições de salubridade. A melhor porta-voz de suas dificuldades foi Patrícia Galvão, mais conhecida pelo pseudônimo Pagu.

Desde cedo dedicada às letras, Patrícia participou da Semana de Arte Moderna de 1922, colaborando com a Revista de Antropofagia. Conheceu Luís Carlos Prestes, com quem dizia ter “se feito ciente da verdade revolucionária”. Seu romance Parque industrial, publicado em 1922, provocou escândalo por seus ataques à sociedade paulistana, pela revelação das atrozes condições de vida dos operários e pela desmistificação da figura feminina fora do espaço doméstico.

Em 1931, Pagu filiou-se ao Partido Comunista e criou o pasquim O Homem do Povo, de curta duração. A militância política absorveu-a completamente, razão pela qual foi presa várias vezes, no Brasil e no exterior. Em 1950, sua inquietação política a levou a candidatar-se a deputada estadual pelo Partido Socialista Brasileiro, sem sucesso.

Retrato de 1927 da escritora,
jornalista e ativista política
 Patrícia Rehder Galvão, a Pagu
As mudanças trazidas pelo novo sistema político abriram caminho para a criação de organizações de luta. O Partido Republicano Feminino foi fundado em 23 de dezembro de 1910, tendo como sua primeira presidenta a feminista baiana Leolinda Daltro. A organização se propunha a promover a cooperação feminina para o progresso do país, combater a exploração relativa ao sexo e o mais importante: reivindicava o direito ao voto. A discussão sobre o tema vinha se arrastando desde 1880, e em novembro de 1917, Leolinda e suas companheiras levaram às ruas do centro da capital dezenas de simpatizantes do sufrágio universal.

Depois, foi a vez da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Lideradas pela bióloga Bertha Lutz, as sufragistas encontraram no senador Juvenal Lamartine um aliado na luta pelo voto. A parceria foi duradoura, pois ela acompanhava o político em seus deslocamentos. Junto com Carmem Portinho, Bertha aproveitava para fazer discursos, distribuir panfletos e dar entrevistas.

Em 1930, começou a tramitar no Senado o projeto que garantiria o direito de voto às mulheres, mas com a revolução as atividades parlamentares foram suspensas. Depois da vitória das forças democráticas, foi nomeado um grupo de juristas encarregado de elaborar o novo código eleitoral. Entre eles estava Bertha, formada então em direito também. A Revolução Constitucionalista atrasou mais uma vez a aprovação do projeto. Só em fevereiro de 1932, Getúlio Vargas assinou o tão esperado direito de voto. Bertha elegeu-se deputada federal em 1936 e teve uma carreira política nacional e internacional brilhante.

No final da década de 1940, outra organização nascia: a Federação das Mulheres do Brasil, guarda-chuva para militantes feministas de várias tendências de esquerda com forte influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB). As principais preocupações? Luta contra a carestia, pela paz mundial e a proteção à infância. Em 1953, como resultado dessa mobilização, foi realizada a Passeata da Panela Vazia. Durante a Greve dos 300 Mil, que paralisou São Paulo, as militantes ocuparam espaços e instalaram departamentos femininos nos sindicatos. Em decorrência dessas ações nasceu a Superintendência Nacional do Abastecimento, dando amplos poderes às autoridades públicas para defender os interesses da população.

 
A campanha pelo voto feminino
 é registrada em desenho de
1914 do cartunista Raul Pederneiras
Entre a década de 1950 e os chamados “anos de chumbo” da ditadura militar muitas mulheres se destacaram, como Ana Montenegro. Ativista política e feminista nascida em Quixeramobim, no Ceará, participou da Federação das Mulheres do Brasil e do Comitê Feminino Pró-Democracia. Teve papel ativo na criação do jornal #Momento Feminino#, editado ao longo de dez anos pelo movimento de mulheres comunistas. Dentro do PCB, participou da Frente Nacionalista Feminista desde meados da década de 1950 até o golpe militar de 1964.
 Durante o governo militar uma importante educadora se tornou a primeira ministra de Estado: Ester de Figueiredo Ferraz. Socióloga e psicóloga, docente de direito penal na Faculdade de Direito da USP, reitora da Universidade Mackenzie entre 1965 e 1971, foi convidada pelo presidente João Batista Figueiredo para ocupar o cargo de ministra 
da Educação e Cultura entre 1982 e 1985.

Não foi a única a apoiar o regime. Em plena Guerra Fria, um movimento político mobilizou milhares de mulheres em várias cidades brasileiras: a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde). Sob o lema “Deus é a verdade. Democracia e Liberdade” e a presidência de Amélia Molina Bastos, a organização patrocinou intensa campanha nas ruas por meio de “marchas” contra o comunismo.

Do outro lado do espectro político, inúmeras mulheres passaram para a clandestinidade, lutando contra o regime instalado: Elza Monnerat, Elizabeth Teixeira, Clara Sharf, Damaris Lucena, entre outras, algumas das quais morreram em combate contra a repressão.




Folheto de apoio à candidatura
de Bertha Lutz, eleita deputada em 1936
Durante a década de 1970, houve muito entusiasmo e participação feminina nas mais diversas discussões sobre o papel da mulher na sociedade. No Rio de Janeiro, Branca Moreira Alves, Mariza Heilborn e Kátia Braga, entre outras, fundaram o Centro da Mulher Brasileira. Em São PauloAlbertina Duarte criou com colegas o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira. No Sindicato dos Jornalistas, agitavam-se os Encontros de Mulheres de São Paulo, organizados por Raquel Moreno e Neide Abati.

Clubes de mães, associações de donas de casa e movimentos populares da periferia azeitavam as lutas por melhores condições de vida. Nas universidades, Walnice Nogueira Galvão e Betty Mindlin pensavam e pesquisavam a condição feminina, enquanto Terezinha Zerbini levantava, a partir de 1975, a bandeira do Movimento Feminino pela Anistia.

 Nas fábricas, as trabalhadoras combatiam o "machismo" dos dirigentes sindicais e lutavam por justiça e cidadania. Delegadas se reuniram no Pacto de Unidade Intersindical de São Paulo enquanto os congressos de mulheres metalúrgicas e a participação nas greves do ABC se multiplicavam. Na mesma época, as trabalhadoras rurais começaram a se unir e a participar das lutas sindicais e do Movimento dos Sem-Terra. O centenário da Abolição, em 1988, marcou, por sua vez, a discussão de temas como racismo, educação, trabalho e saúde entre mulheres negras. Nesse período também surgiram grupos como o Somos, porta-voz de mulheres com diferente orientação sexual, que lutavam contra o preconceito e a violência.

A década de 1980 foi marcada pela criação de políticas específicas para mulheres. Com a redemocratização, o então presidente José Sarney enviou ao Congresso o projeto de lei criando o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que desempenhou um papel fundamental durante a Constituinte de 1988, representando os interesses femininos nas discussões do Parlamento. Criou-se um lobby nacional, o "lobby do batom", como ficou conhecida a atuação da bancada feminina no Congresso Nacional, destacando-se aí Heloneida Studart. A perfeita sintonia com os movimentos populares permitiu a aprovação de mais de 80% das reivindicações encaminhadas aos congressistas na área dos direitos da mulher.


Depois dessa bela caminhada, capitaneada por mulheres corajosas e idealistas, o que temos hoje? O feminismo contemporâneo multiplicou-se em mais de mil grupos espalhados pelo país atuando em diferentes setores por meio de ONGs, rádios, universidades, projetos educativos e de saúde. Em plena democracia, não há mais obstáculos para a representação de mulheres no Congresso.

Pode-se dizer que, se alguém conquistou plena igualdade política, foram as brasileiras. Elas fazem campanhas e são eleitas, sem as perseguições movidas no passado como, por exemplo, a que atingiu Bertha Lutz, acusada de fraude eleitoral. E a igualdade com os políticos é absoluta: elas têm isonomia no horário político eleitoral e não encontram barreiras para o financiamento de suas campanhas.

Os jornais e a mídia, no entanto, nos mostram outra forma de igualdade, muito menos nobre: nossas eleitas roubam, gastam cartão corporativo e mentem como seus pares do sexo masculino. Integram “mensalões”, “mensalinhos” e dossiês de todo o tipo. Às vezes, na primeira linha. Outras, nos bastidores. Parecem ter esquecido da agenda arduamente amadurecida durante o movimento de redemocratização do país ou inspirada nas lutas feministas internacionais, principalmente na França e nos Estados Unidos.

A ativista Bertha Lutz discursa em 
São Francisco, Califórnia, no ano de 1945





No Brasil, continuamos sem ações eficientes que atendam direta e majoritariamente os problemas femininos, como gravidez na adolescênciaaumento de creches e de programas de saúde para a terceira idade e educação para a inserção profissional da mulher. O individualismo, tão presente na pós-modernidade, parece ter desfeito os laços antes forjados. Quanto às nossas candidatas à presidência, saídas de um ambiente político majoritariamente deteriorado, o que terão a oferecer de novo, quando as alianças partidárias para a eleição continuam a se escorar na corrupção? A história já demonstrou que só a diferença sexual não basta.

Mary Del Priore / Uol












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