sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

MAYANA ZATZ


Bióloga e professora titular de genética da Universidade de São Paulo (USP), Mayana Zatz chora com freqüência. Três meses atrás, sua mãe Ella, uma polonesa formada em letras e fluente em oito idiomas, “perdeu o interesse pela vida” e morreu, lúcida, aos 92 anos. Com o emocional aflorado, Mayana faz um exercício para conviver com a perda e cita uma passagem. “Ao sair de um restaurante, na Índia, no ano passado, vi um pessoal numa espécie de procissão, carregando flores, cantando”, conta. “Era um enterro. Me explicaram que, se a pessoa morre depois dos 90 anos ou viveu o suficiente para ter bisnetos, teve tudo de bom na Terra e a morte tem de ser festejada. Não se deve chorar.”

Para alguém como Mayana, que passa 18 horas por dia focada no trabalho e já ouviu histórias de cerca de 25 mil pacientes, sublimar o choro deveria ser uma tarefa relativamente tranquila. Mas ainda não é. Aos 58 anos, presidente-fundadora da Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim), Mayana emocionou-se, recentemente, em visita à família de um de seus pacientes, em Natal, acompanhada do psicanalista Jorge Forbes. O paciente, de 20 anos, sofre de distrofia de Duchenne (é a forma mais grave entre os 30 diferentes tipos da doença). Pessoas com essa enfermidade nascem normais e, aos três anos, começam a se debilitar. Com 10, param de andar até que os músculos superiores são atingidos a ponto de impossibilitar movimentos como levantar um copo.

“Foi emocionante ver um garoto de cadeira de rodas frequentando a faculdade, cheio de amigos, indo a festas”, conta ela, que, por meio da instituição, propicia fisioterapia, hidroterapia, terapia ocupacional e outras atividades em prol da melhoria da qualidade de vida de cerca de 100 crianças com distrofia (degeneração progressiva da musculatura esquelética).



Há quatro meses, Mayana desenvolve com o psicanalista Forbes um trabalho inovador na área terapêutica. Ela – que já identificou 6 genes responsáveis por doenças neuromusculares e é dona do título de melhor cientista da América Latina conferido pela Unesco/L’Oréal, em 2001 – e o psicanalista têm tratado, conjuntamente, de pacientes com doenças genéticas (irreversíveis, para as quais não existe cura) no Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, que é coordenado pela cientista.


No laboratório da USP: “Fazer ciência é muito
pouco. A gente tem de fazer mais coisas”




“Eu nunca vi nada publicado a este respeito: um psicanalista e uma geneticista, juntos, na mesma sala, fazendo clínica numa ação conjunta”, diz Forbes. “O nosso trabalho é não deixar o ‘doente’ se acomodar no narcisismo da sociedade. É fazer com que encare as modificações de que é acometido como algo surpreendente e que responda não através da acomodação do sintoma, mas por meio da invenção de uma nova forma de viver.”

Mayana resume o trabalho como um “tratamento de choque”, uma revolução na vida dos pacientes. Ela mesma é uma revolucionária: raramente usa jaleco branco, pouco fica debruçada no microscópio

ou fechada em laboratório. Seu prazer está na parte humana da ciência, na interação com as histórias dos pacientes. “Procuro sempre mostrar a importância do trabalho social e não só o científico”, afirma. “Talvez a minha diferença em relação ao cientista tradicional seja o fato de não ser só cientista. Fazer ciência é muito pouco. A gente tem de fazer mais coisas.”



E ela faz. Em 2004, a cientista pendurou o jaleco no laboratório e passou a freqüentar Brasília a cada duas semanas. Lá, foi voz ativa na aprovação, em março do ano passado, da Lei de Biossegurança, que autorizou as pesquisas com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos. “Ajudei a reescrever o projeto de lei, bati de porta em porta para dar aula aos senadores sobre célula-tronco. A maioria não tinha a menor noção”, afirma a cientista. Ela se refere às células que têm o potencial de formar diferentes tecidos (sangue, ossos, nervos, músculos, etc.) e cuja utilização para fins terapêuticos pode representar a única esperança para o tratamento de inúmeras doenças.



Numa de suas idas à Capital Federal, Mayana, pouco antes de uma audiência com a senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO), foi interpelada por pais de duas meninas (Mayanna e Monique) com atrofia espinhal: “Somos evangélicos, apoiamos as pesquisas e estamos aqui para ajudar”. Mayana entrou com eles no gabinete da senadora e a mãe pediu a palavra: “Sabe, senadora, a Mayanna já anda, mas a Monique ainda não. E outro dia ela disse: ‘Mãe, não dá para você fazer um buraquinho nas minhas costas, botar uma pilha e fazer eu andar igual minha boneca?’”.

A comoção foi geral e a cientista deixou o gabinete com mais um apoio à lei, que foi aprovada dias depois. Faltava a votação dos deputados, que vinha sendo adiada. Certo dia, o então presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, apoiado pela bancada católica, contrária às pesquisas com embriões, pediu uma reunião com a cientista. “Minha filha é fisioterapeuta, conhece seus trabalhos e me disse que está chegando em Brasília e não sairia daqui enquanto eu não colocar essa lei para votação”, disse-lhe Severenino. “Ela é a favor dessas pesquisas e minha esposa também.”

A Lei de Biossegurança foi aprovada por 352 votos a favor e 60 contra. “Foi minha maior briga. Sou briguenta, mas não compro briga pequena”, diz Mayana que, na USP, já injeta célula-tronco em animais e acredita que em menos de dez anos consiga desenvolver terapias para doenças neuromusculares. A ciência é sua praia desde os cinco anos, quando lia os livros dos cientistas franceses Pasteur e Madame Curie. Mayana nasceu em Israel. Com um ano, foi para a França, onde ficou até os sete antes de vir de navio para o Brasil. O sotaque francês aparece sempre que pronuncia o “erre”. Inquieta na infância, a cientista tinha mania de abrir brinquedos para descobrir como eram por dentro. E gostava de provar sozinha tudo quanto era teoria. “Será que água oxigenada deixa o cabelo loiro? Lá ia eu fazer o experimento em mim mesma”, conta.

Seus dois filhos, Cíntia, 32 anos, e Fábio, 30, foram, quando crianças, cobaias dela. “Uma vez, ela fazia pesquisas com hormônios de crescimento e precisava de sangue. Eu e meu irmão tiramos sangue em casa, corremos por 10 minutos para liberar mais hormônios de crescimento e voltamos a tirar sangue”, conta Cíntia. Mesmo consumida quase que totalmente pela profissão – cujo nível de excelência é traduzido pela publicação de 280 trabalhos científicos que foram citados 4.284 vezes em revistas especializadas – a cientista foi uma mãe presente. Ensinou os filhos a andar de bicicleta, a dirigir e jantava com eles e o ex-marido todas as noites. E fazia questão de que a televisão permanecesse desligada para que a família conversasse. “Minha filha dizia que eu era controladora

demais. Adolescente, ela me apelidou de Fidela, em alusão ao Fidel Castro”, conta.



Mayana, hoje, mora com o filho Fábio. Ela foi casada por 30 anos com um engenheiro civil, pai de seus filhos, seu primeiro namorado, primeiro e único casamento. Há sete, ela se separou e explica: “Para o homem, é difícil ter uma mulher que se dedica demais à profissão. Ser uma mulher bem-sucedida acabou com meu casamento. Na maioria dos casos, os homens são criados para serem o centro das atenções. E é difícil para o homem inverter o papel”. A cabeça da cientista está trabalhando até mesmo quando ela corre de manhã pelas ruas acompanhada da mini-schnauzer Mini. “Chego em casa e escrevo as idéias que tive correndo”, conta.

Mayana é vaidosa, mas desde que não lhe tome muito tempo. Unha e cabelo, por exemplo, ela faz uma vez por semana, no salão de beleza na esquina de casa que a atende assim que a cientista liga. “Se saio para comprar roupa, escolho três, quatro peças de uma vez. Sapato, a mesma coisa.” A estética nunca esteve na frente dos estudos para Mayana. Aos 14 anos, já havia meninos a paquerando, mas sua ambição era estudar e casar tarde. Era tão focada na carreira científica que sua mãe Ella, que lia três livros por semana, dizia que a filha era “um poço de ignorância” para assuntos da cultura humanística. “Muita ciência e pouca literatura”, traduz Mayana, que prova o que aprendeu na Índia e sorri ao lembrar de sua mãe.


Fontehttps://www.terra.com.br/istoegente/382/reportagens/personalidade_mayana_zatz.htm





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